ANCHYSES JOBIM LOPES   

O primata perverso polimorfo






O primata perverso polimorfo1

 

The polymorphous perverse primate

 

 

Anchyses Jobim Lopes

 

 


RESUMO

A influência de Darwin no pensamento freudiano. Conhecimentos atuais sobre a evolução dos grandes primatas. As descobertas feitas nas últimas décadas sobre o comportamento de chipanzés e bonobos. Paralelos entre o comportamento sexual e agressivo dessas espécies com o dos seres humanos. Releitura de algumas teses de Totem e tabu a partir desses novos conhecimentos. Filogênese do complexo de Édipo. A dualidade agressiva e erótica da espécie humana.

Palavras-chave: Darwinismo, Grandes primatas, Chipanzés e bonobos, Agressividade e sexualidade, Totem e tabu, Édipo.


ABSTRACT

Influence of Darwin on Freudian thought. Present knowledge about the evolution of the apes. Discoveries made over last decades about chimpanzees and bonobos behaviour. An appraisal between these species sexual and aggressive behavior with human behaviour. A new reading of some Totem and Taboo thesis through that new information. The Oedipus complex phylogenisis. The sexual and aggressive duality of human species.

Keywords: Darwinism, Apes, Chimpanzees and bonobos, Aggression and sexuality, Totem and Taboo, Oedipus.


 

 

Em homenagem aos chipanzés e bonobos
que, ao contrário do que acontece em nosso país,
são vítimas de: governos corruptos,
multinacionais sem ética e caçadores inescrupulosos;
de modo que serão extintos breve em seu meio natural
e só restarão em parques protegidos e zoológicos.

 

Introdução: Freud e o retorno a Darwin

Freud teve grande influência da obra de Charles Darwin. A bibliografia das obras completas de Freud cita todos os livros do pai da ideia de seleção natural, inclusive cartas e a autobiografia. Utilizada ao longo de toda a sua obra, Freud classifica o darwinismo como uma das três feridas narcísicas da humanidade, precedida pela copernicana e sucedida pela da psicanálise. Copérnico, Darwin e Freud, os três estão no mesmo plano quanto ao processo de crítica dos pilares judaico-cristãos do ocidente, e é o último da trinca quem mais de uma vez afirma isso. Mais diretamente, a hipótese freudiana do processo de antropogênese, iniciado em Totem e tabu e ainda inconcluso ao tempo de Moisés e monoteísmo, tem sua semente no projeto darwinista.

Além das grandes teses sociais antropológicas, também ocorreu o interesse de Freud por mudanças físicas específicas ocorridas durante a evolução da espécie humana. Menos discutidos que os temas da horda primeva e do assassinato do pai primevo, são suas considerações sobre a importância do surgimento do bipedismo para o da repressão. Reflexões que se iniciam em uma carta a Fliess, de 14 de novembro de1897:

Frequentemente suspeitei de que algo orgânico possuía um papel na repressão [...] a noção estava ligada com a mudança da função do olfato: o andar ereto foi adotado, o nariz levantou-se do chão ao mesmo tempo em que um número de sensações, que antes eram interessantes, se tornou repulsivas — por um processo ainda desconhecido por mim (FREUD, 1978, p. 268).

Freud cultivava com esmero a lei de Haeckel de que a ontogênese segue a filogênese. Considerando que à época de Freud pouquíssimo se sabia sobre as linhagens de homídios pré-humanos e muito pouco sobre o comportamento dos grandes primatas nossos parentes mais próximos, sendo uma espécie inteira ainda viva na África completamente desconhecida — os bonobos —, é plausível que a obra freudiana não tenha especulado mais nessa vertente, por absoluta incapacidade de se fundamentar em dados objetivos. Desse modo, além dos já mencionados temas abordados em Totem e tabu, não foi muito mais do que a relação entre repressão2 e bipedismo que pode ser utilizado por Freud para hipóteses sobre o processo de antropogênese. Contudo, tal tema de estudo é pertinente ao projeto freudiano.

Ao contrário do que se possa impensadamente concluir, estudar o papel de processos físicos implica a defesa não de comportamentos instintuais inatos, mas sim da adaptabilidade a partir do surgimento de sociedades e formas de agir e sentir muito mais ricas, recriadas de modo diferente por cada um a cada geração, isto é, na plasticidade da pulsão.

 

Considerações gerais sobre nossos primos

Ciência muito mais recente, a primatologia, o estudo dos grandes primatas, seus corpos, mas, acima de tudo sua psicologia e suas sociedades, trazem novidades interessantíssimas para uma complementação da linhagem psicanalítica acima mencionada. Grandes primatas são nossos primos mais próximos: orangotangos, gorilas, chipanzés e bonobos. Ao contrário da asserção atribuída a Darwin, que tanto ofende os fundamentalistas de várias religiões, não somos parentes próximos, muito menos descendemos dos macacos. Estes têm rabo, os grandes primatas não (infelizmente não temos em nosso idioma termos separados, como em inglês, em que monkeys designa aqueles com cauda e apes os sem cauda).

Classificada como a superfamília hominoidea surgiu há cerca de 20 milhões de anos, tendo os orangotangos sido os primeiros a se mudar para mais longe há 14 milhões, os gorilas se separaram depois, há 7,5 milhões e, finalmente, os ancestrais dos chipanzés e bonobos e os ancestrais dos seres humanos pediram as contas e foram morar separados há meros 5,5 milhões de anos. Já chipanzés e bonobos se separaram entre um milhão e meio de anos ou talvez bem menos. Em termos evolutivos e na história dos mamíferos essas distâncias são mínimas. Todos os primos compartilham entre si 97% do DNA, sendo que com os de primeiro grau — chipanzés e bonobos — temos 98,4% de DNA igual.

Importante que se acentue que os estudos comparados, desde a genética até o comportamento e a sociologia dos grandes primatas, nada tiveram em comum com o nascimento de pretensos saberes como a sociobiologia e a psicologia evolutiva. A primeira nasceu do estudo das abelhas. Partindo daí, a segunda pegou alguns dogmas pseudodarwianianos e com eles construiu extenso castelo de cartas, que nada mais é que uma nova vertente do antigo darwinismo social — inclusa sua ramificação nazista — e que, usando supostas descobertas ditas da neurociência, racionaliza o neoliberalismo e o patriarcado como consequências necessárias da natureza humana. Os autores mais divulgados da primatologia duramente criticam e refutam esta tal psicologia (RYAN; JETHÁ, 2010; WAAL, 2013), cuja base epistemológica, aliás, é nula. Entre a existência de um gene e um comportamento específico todas as etapas intermediárias entre material genético e funcionamento cerebral são desconhecidas ou hipotéticas. Fora que todos os fatores ambientais (leia-se aprendizado, sociedade e cultura) teriam de ser rigorosamente afastados por meio de pesquisas com população controle.

Retornando a nossos primos, as diferenças anatômicas entre os chipanzés e os bonobos são muito pequenas, exceto que os últimos possuem uma cabeleira partida ao meio. Mas as condutas sociais e sexuais são acentuadamente diferentes. Uma mudança geográfica, o aumento de volume do rio Zaire há um milhão e meio de anos ou menos fez com que um grupo de antepassados de ambas as espécies ficasse ao norte do rio, separado de outro ao sul. Os do norte sofreram mudanças climáticas e ambientais mais rigorosas, enquanto os do sul tiveram sorte de uma ambiente mais estável. Logo os antepassados dos chipanzés modernos evoluíram mais rápido do que os dos atuais bonobos, levando a hipótese de que estes estejam mais próximos do que teriam sido os antepassados tanto de chipanzés quanto dos humanos (KANO, 1992).

 

Falando sobre os chipanzés

Os chipanzés, tendo permanecido ao norte, onde as florestas diminuíram e a savana aumentou, tiveram de descer bastante das árvores para apelar para a caça. Têm uma dieta onívora, mas apreciam mais uma boa carne e caçam em grupos liderados por um macho alfa, e podem ser muito agressivos. São patriarcais, hierarquizados, poligínicos (várias fêmeas para um macho), embora, com frequência, fêmeas mais velhas conquistem posição de relevo. Apesar de bem menores que os seres humanos, e extremamente fortes, os chipanzés podem ser mortais. Ao contrário do se apregoa, os homens não são os únicos animais que matam os de sua própria espécie por prazer. Chipanzés executam 'chipanzecídios' em tribos rivais sem benefício aparente.

Apesar dessas características que podem parecer muito humanas e moralmente negativas, têm uma sociedade com qualidades até pouco consideradas restritas aos primos humanos: ajudam velhos e doentes, fêmeas, e até machos adotam filhotes de pais que morrem, utilizam e são capazes de inventar instrumentos simples que transmitem a gerações seguintes. Possuem a capacidade de empatizar com os sentimentos de outros do mesmo grupo e mesmo com seres humanos, quando com eles estabelecem bom relacionamento. Pode-se falar até de luto quando perdem os mais próximos. A empatia, isto é a capacidade de se identificar com sentimentos dos outros, também permite que sejam extremamente manipuladores dos sentimentos alheios. Logo, os chipanzés são excelentes políticos, formando alianças e golpes em uma sociedade muito hierarquizada. Em um ambiente mais hostil que seus primos bonobos, os chipanzés tiveram de restringir a sexualidade quase que somente à reprodução. Tanto pelo fato de que durante a cópula qualquer animal se torna vulnerável (para um predador a caça de dois a preço de um), quanto para manter, entre os machos, a organização social necessária à caça com o mínimo de conflitos.

Entre outras qualidades, os chipanzés também emitem sons com significados ainda não conhecidos e se reconhecem entre si pelos sons e pela voz. Identificam a própria imagem num espelho e são capazes de reconhecer dezenas, até centenas de outros chipanzés por meio de fotografias. Isto é, têm um grau surpreendente de individualidade, mas não um núcleo familiar como o conhecemos. Os filhotes são criados apenas com a mãe e os irmãos, frequentemente num grupo isolado do grupo principal.

Mas é relatado que um macho adulto jamais copula com sua mãe biológica ou adotiva, assim como é descrito que, se criado com uma irmã, biológica ou não, também não terá relações sexuais com ela. A figura de pai é desconhecida. Mas sexo entre os pais e suas filhas biológicas é evitado, porque as chipanzés fêmeas jovens saem em busca de outros grupos de sua espécie. Contudo, a sexualidade é focada apenas na reprodução e muito limitada se comparada à dos bonobos e humanos. A relação sexual é sempre macho/fêmea e com a penetração por detrás.

 

Bonobos: uma pouca vergonha!

Os bonobos, ao contrário, têm uma dieta predominantemente de frutas, são igualitários, não violentos e matriarcais. Têm as mesmas habilidades sonoras e o reconhecimento da própria imagem no espelho que seus primos chipanzés. Apelidados de anarquistas ou hippies da floresta, não são especialistas em política. Permanecendo em um meio menos hostil que seus primos chipanzés, puderam se dedicar mais ao prazer do que à caça. Mas sua metade ao sul do rio, se por um lado, fornece grande quantidade de frutos, estes mudam sua concentraçãatilde;o geográfica com certa rapidez, o que fez com que os bonobos tivessem de se organizar em grupos maiores que os chipanzés. Grupos capazes de se deslocar inteiros e rapidamente, inclusive com fêmeas e filhotes. Isso justificaria uma organização social completamente diferente dos chipanzés.

Durante décadas foram escondidos por seus primos humanos nos zoológicos, dada a suposta imoralidade de conduta. Por mais incrível que pareça, exceto para os psicanalistas, que são especialistas em detectar o recalque sexual, os bonobos como espécie só foram identificados em 1929. O estudo dos bonobos ficou décadas atrás do dos chipanzés porque biólogos e estudiosos humanos tinham vergonha de pesquisá-los. Imagine-se relatar suas descobertas em público. Expô-los em zoológicos, nem pensar.

Os bonobos resolvem todos os conflitos através do sexo. São especialistas em beijo de língua (qualidade também dos chipanzés), atingem o orgasmo inúmeras vezes ao dia. As fêmeas são sempre sexualmente receptivas, estejam férteis ou não. Ao contrário de todas as dos demais primatas, exceto na espécie humana, as fêmeas também têm o desenvolvimento de seios, não muito grandes, que em ambas as espécies não têm nenhuma utilidade na amamentação; é apenas um atrativo sexual. Um excitante bastante razoável do ponto de vista evolutivo, uma vez que praticam o coito frontal, preferência quase exclusiva, na qual são os únicos primatas além dos humanos (talvez um menos exclusivo nessa escolha). Além do beijo de língua, bonobos são especialistas em: sexo oral, masturbação mútua, vários tipos de frotteurismo, mas não é relatado coito anal.

A principal fama (ou má fama) dos bonobos entre os humanos se dá por sua extrema frequência de todos os tipos de relações sexuais, independentemente do sexo do(a) parceiro(a). Não se pode falar de homossexualidade na acepção de uma opção exclusiva, porque todos os bonobos são completamente e muito freudianamente bissexuais. Ao contrário dos chipanzés, cujas fêmeas se tornam incapazes de sexo por anos após cada parto, as fêmeas bonobos rapidamente voltam à atividade.

Logo, nos bonobos a sexualidade não somente extrapola completamente a reprodução ao contrário dos chipanzés, exímios e hierarquicamente fixados políticos, todos os vínculos sociais e todos os conflitos são explicitamente cimentados e resolvidos com sexo. Sendo dominantes, as fêmeas resolvem conflitos de poder e outros com sexo entre elas. O status social dos machos deriva do de sua mãe.

Se extrapolássemos conceitos humanos como pedofilia, os bonobos seriam acusados de realizá-la, mas sem cópula, começando com a estimulação genital nos bebês. Contudo também possuem a restrição absoluta ao sexo adulto genital com penetração entre mãe e filho dos chipanzés.

 

Nascimento do tabu do incesto?

Para os psicanalistas o que mais chama a atenção no comportamento com os primos é a existência do 'núcleo duro' do tabu do incesto tal como foi descrito por Lévi-Strauss (1982) nos seres humanos. Nenhuma cultura humana conhecida, presente ou passada, admitiu relações sexuais mãe-filho. As relações pai-filha não são proibidas em muitas culturas, tal com não o são no Levítico. O limite entre comportamentos inatos e adquiridos atinge aqui seu limite. Em outras tantas culturas como a egípcia, durante milênios o casamento entre irmãos era a regra na família real e na nobreza, principalmente porque a linhagem real passava por via materna. Os faraós precisavam se casar com suas irmãs porque elas seriam as verdadeiras herdeiras do trono. Esse costume permaneceu até a conquista grega e romana do Egito. A última rainha, a famosa Cleópatra VII, antes de conhecer César e Marco Antônio, foi casada com dois de seus irmãos.

Apesar de tudo, em muitos aspectos Freud ainda era homem de seu tempo. Bem eurocêntrico como todo bom europeu, sua obra se fundamenta numa separação rígida entre natureza e cultura. O mito do pai primevo e a origem da proibição do incesto em Totem e Tabu (FREUD, 1978) caracterizariam o momento exclusivamente humano da passagem de natureza a cultura. Foi a ideia que seguiu o pai da antropologia cultural. Mas exclama o primatólogo mais conhecido, Frans de Waal (2013): "quão longe do alvo estava Lévi-Strauss" (WAAL, 2013, p. 71). Contudo, como escreveu outro dos principais primatólogos, descrito pelo mesmo Waal como o cientista japonês que por mais tempo com bonobos em seu meu meio ambiente, Takaioshi Kano (1992):

[...] mecanismos psicológicos e sociais para evitar o incesto existem em todos os primatas [...] a sociedade primata evoluiu ao longo de um eixo de "evitação do incesto" [...] longe de ser comportamento avançado único, humanamente produzido, evitação do incesto é comportamento que surgiu ao longo da evolução primata (KANO, 1992, p. 2).

O tabu do incesto entre mãe-filho de nossos primos pode ser explicado tanto biológica quanto psicologicamente. Possivelmente ambas as explicações se complementam.

Chipanzés não se tornam adultos pelo menos antes dos doze anos. Quase o mesmo ocorre entre os bonobos, cujas fêmeas se tornam sexualmente maduras por volta dos nove anos e são consideradas adultas entre os treze ou quatorze anos, quando costumam ter sua primeira cria. Em ambas as espécies os filhotes são amamentados por quatro a cinco anos (chipanzés há relatos de até seis anos).

A longa infância está muito próxima da duração entre os humanos, e a amamentação em muito excede nossos costumes atuais. Com uma década de infância, uma dependência absoluta da mãe nos primeiros anos e possuidores de um córtex apenas menor que o dos humanos e de alguns mamíferos marinhos, se desenvolve extensa memória do período infantil. Sem se esquecer do vínculo afetivo estabelecido na amamentação com mãe e filho se entreolhando.

A memória infantil se sobreporia sobre o corpo adulto. Isto é, diante de um filhote já adulto, a mãe sempre o reconheceria como filhote e, diante da mãe, o filhote sempre se comportaria como filhote. Como mencionou Freud em Totem e Tabu ao se referir ao que impediria o incesto de filhos com suas mães: uma "imagem inalterada dela preservada em seu inconsciente" (FREUD, [1913] 1978, p. 16). Não sabemos se essa característica surgiu primeiramente no antepassado comum entre chipanzés e bonobos, ou primeiro nos antepassados dos seres humanos. Ou de um antepassado comum a todos. De modo que permanece em aberto o prêmio de quem foi o primeiro neurótico na história da evolução.

 

Feminismo primata ou primevo?

Em uma época que se usa a neurociência para justificar o comportamento humano como inato, a primatologia vai no sentido contrário. A conduta sexual dos bonobos, as estratégias políticas e de caça dos chipanzés, a invenção de instrumentos, a capacidade de aprender símbolos geométricos são algumas das características que embasam a afirmação de que "comportamento inato é coisa rara em nossos parentes mais próximos" (WAAL, 2007, p. 149). A afirmação tão repetida pela psicologia evolutiva de que os homens preferem mulheres jovens porque estão mais aptas a reproduzir bem, e as mulheres preferem homens mais velhos e de status elevado porque serão bons provedores para seus filhos não encontra eco na observação de nossos primos. Bonobos e chipanzés preferem companheiras totalmente maduras. No caso dos chipanzés, em que a sexualidade é muito mais rarefeita que nos bonobos e apesar da figura do poderoso chefão no macho alfa, as jovens suam um bocado para conseguir sexo até com os betas. Um Berlusconi e suas prostitutas adolescentes são criação exclusivamente humana.

Nos dois nossos primos as fêmeas possuem francas preferências em relação à busca de parceiros. Mesmo no caso dos chipanzés, patriarcais e submetidos a um macho alfa, frequentemente a astúcia feminina ajuda as fêmeas a eleger um parceiro nada alfa e a enrolar o chefão. O que caracteriza chipanzés fêmeas, e muito mais suas primas bonobos, é dar mais importância ao seu prazer sexual do que a supostas características genéticas úteis para a prole. Mas os chipanzés machos alfas compartilham a obsessão masculina humana com a fidelidade feminina e, quando tomam o poder, ficam com as fêmeas e simplesmente matam os filhotes do alfa deposto (aqui, sim, h&aacaacute; um comportamento inato, uma vez que não é possível nenhuma noção de paternidade).

Já os bonobos machos não estão nem aí para política e conquistas violentas de poder. Comunitariamente ajudam filhotes de todos, ainda mais que suas fêmeas frequentemente são poliândricas e o vínculo de relação mais forte é exclusivamente mãe-filho, que, como vimos, é quase tão forte entre os chipanzés. Mas nestes os vínculos entre machos formando confrarias masculinas é o que detém o poder.

Se, por um lado, os bonobos fornecem subsídios para a defesa freudiana da bissexualidade e da libido como mantenedora de todos os vínculos sociais (talvez o que também permita o maior vínculo entre os machos no caso dos chipanzés), por outro, parecem o pesadelo do patriarcado humano. Assemelha-se ao que poderia ter sido o matriarcado originário defendido por Bachofen, citado por Freud em Totem e tabu. Período anterior à atual cultura patriarcal, à prevalência do monoteísmo, ao maior desenvolvimento da agricultura e ao nascimento da escrita.

 

Quem possui o sexo rei?

Claro que existem imensas diferenças entre os seres humanos, chipanzés e bonobos. Diferenças ainda maiores em relação a primos mais afastados como gorilas e orangotangos, e maiores ainda aos mais distantes gibões. Entre o sexo masculino e o sexo feminino, humanos têm um peso médio de 86/74 kg, chipanzés 40/35 kg, bonobos 35/32 kg, gorilas 160/80 kg, orangotangos 75/37 kg e gibões10/10 kg. Nota-se que a variação de peso entre os sexos em humanos, chipanzés e bonobos é de 20%. Nos gorilas e orangotangos de 100%. Gibões machos e fêmeas têm o mesmo peso.

Espécies em que os machos são poligínicos e lutam violentamente entre si pelas fêmeas, que passam a ser propriedade exclusiva sua e passivamente são submetidas ao coito, os machos têm de ser grandes e fortes para lutar entre si. Donde gorilas e orangotangos machos têm o dobro do peso das fêmeas. Pouco importa que os primeiros tenham um pênis ereto de 3 cm e os segundos de 4 cm. Nos gibões, uma espécie que estabelece uma monogamia absoluta e não há competição entre os machos, os dois sexos são do mesmo peso e tamanho.

Já nós e nossos primos mais próximos temos uma variação de peso entre os dois sexos de 20%. Isso indica um grau leve de competição entre os machos e certa tendência à poliginia e poliandria, se não simultânea, pelo menos ao longo da vida. Para certos autores decididamente a monogamia humana total seria uma imposição antinatural (RYAN; JETHÁ, 2010).

A obsessão freudiana com o pênis se torna digna de nota quando se mede que os homens têm em média 13/18 cm, proporcionalmente ao peso, o mesmo que bonobos e chipanzés com 7,5 cm. Só que o ato sexual humano tem uma duração média de 474 segundos, enquanto o de nossos primos mais próximos dura entre 7 e 15 segundos. Orangotangos conseguem atingir 60 segundos, mas os campeões são os gorilas com 900 segundos. Do ponto de vista humano masculino os gorilas não parecem muito invejáveis já que se acasalam poucas vezes por ano e exclusivamente para reprodução, assim como pelos dados acima sobre as dimensões de seus genitais, sendo que os testículos são internos e do tamanho de um grão de feijão.

 

Totem e tabu rebobinado (Totem and taboo reloaded)

Retornemos à hipótese sobre a relação entre bipedismo e recalque, citada ao início, que demonstra como Freud se interessava tanto pelo darwinismo quanto pelo pelos aspectos físicos da antropogênese, que em Totem e tabu é abordada a partir da origem do complexo de Édipo. As descobertas sobre nossos primos chipanzés e bonobos tornam atual que se repense vários aspectos dessa obra tão questionada de Freud.

Primeiro, se o tabu do incesto já existe sob a forma da proibição de relações sexuais mãe-filho, nuclear segundo Lévi-Strauss, nossos primos não dispõem de uma figura paterna. Segundo, há que pensar que a descrição da horda primeva e o assassinato do pai primevo, segundo Freud, constitui uma narrativa bem machista, homem que era de seu século. As mulheres não têm nenhuma participação no ato de fundação da passagem do natural ao cultural no mito freudiano. Está implícito que constituem mero objeto do desejo dos machos, sem nenhuma vontade própria. Para Freud mulher e cultura eram antagônicas a partir do próprio ato de fundação da humanidade.

O estudo de chipanzés e bonobos mostra que, ao contrário, a figura materna e seu tabu do incesto são anteriores ao nascimento da figura paterna, mesmo que tenha sido essa a grande criação do processo de antropogênese humano. Chipanzés e bonobos fêmeas não são nada passivas, levantando a hipótese de que o mito descrito em Totem e tabu tenha de ser atualizado em relação ao papel ativo do feminino: possivelmente instigaram os machos a alianças ou traições entre eles, formaram vínculos eróticos ou tanáticos não só com o outro sexo, mas entre elas mesmas, quem sabe, não deram até mesmo uma mãozinha no assassinato do pai primevo? Mesmo considerando-se que Freud não poderia inteiramente deixar de ser um homem formado pelo patriarcado de seu tempo, por um momento questionou se "[...] aqui não poderia estar o germe do matriarcado, descrito por Bachofen que por sua vez foi substituído pela organização patriarcal da família" (FREUD, 1978, p. 144).

Desse modo, o mito de Freud e Lacan de uma lei instituída somente pelo sexo masculino deve ser criticado. Em nossos primos há um esboço de lei que é passado pela mãe: o sentimento de fraternidade e cooperação entre os irmãos.

Também existe a hipótese de que, tendo os chipanzés passado parcialmente à savana e necessitando se organizar para a caça, a pressão evolutiva que sofreram foi maior que a dos bonobos. Segundo Kano (1992) tudo indica que os bonobos tenham mudado menos que os chipanzés em relação ao antepassado comum de todas as três espécies. Logo, os ancestrais dos humanos, embora possam não ter tido uma sexualidade tão efusiva quanto a dos bonobos atuais, provavelmente não a tinham restrita à reprodução, nem tão dominada pelos machos quanto a dos atuais chipanzés.

Freud chegou a indagar se a aliança entre os irmãos para o assassinato do pai primevo poderia ter sido 'baseada em atos ou sentimentos homossexuais, talvez originados durante o período de expulsão da horda' (FREUD, 1978, p. 144). Tendo por fundamento a hipótese de que os ancestrais humanos teriam características próximas aos atuais bonobos, algo completamente desconhecido por Freud, pode-se pensar que não houve um aumento, mas apenas o resultado de uma já existente disposição a bissexualidade. E sabemos como o tema da bissexualidade era caro a Freud.

Os antepassados dos seres humanos tiveram de abandonar completamente a vida arborícola em favor da savana. A luta pela sobrevivência em um meio mais hostil fez com que sofressem uma pressão evolutiva muito maior que seus primos: donde o bipedismo completo e uma organização social muito mais complexa para a caça. Organização da qual faz parte uma atividade sexual permanente, muito mais rica e mais diversificada do que a dos chipanzés. Ao mesmo tempo, o bipedismo, tornando os genitais à mostra, teria sido um dos fundadores da repressão. Defende Freud em O mal-estar na civilização (Civilization and its discontents):

Os genitais também produzem uma forte sensação de cheiro que muitos não podem tolerar e que lhes estraga a relação sexual. Assim devemos achar a raiz mais profunda da repressão sexual, que avança junto com a civilização, como sendo a defesa orgânica da nova forma de vida alcançada pela postura ereta do homem, contrária a sua existência animal anterior (FREUD, 1978, p. 106).

Além da complexidade das relações afetivas e eróticas, a ampliação da teia social só teria sido possível pelo desenvolvimento da laringe humana. Nossos primos nem de longe possuem algo parecido. Por outro lado, tornou o pescoço comprido do ser humano extremamente vulnerável para qualquer inimigo, humano ou não. Além disso, a laringe comprida frequentemente confunde sua função fonadora, com a de respiração e a de alimentação. Antes da era dos antibióticos um engasgo não resolvido possivelmente conduzia a uma pneumonia fatal. Se houve alguma vantagem, foi a criação de um órgão riquíssimo para o que nos torna mais humanos: a fala. A incapacidade em produzir sons complexos faz com todas as tentativas de ensinar linguagem a nossos primos sejam por meio de blocos e símbolos visuais.

Resta a especular, retornando à questão do bipedismo completo, sua relação com a repressão sexual e o recalque, sem o qual não haveria linguagem humana, com sua infinita combinatória de um número finito de elementos. Sem recalque e recombinação de significantes e significados não haveria inconsciente, logo não existiriam: arte, poesia, o sonho infinito (outros mamíferos sonham, mas enredos fixos, e nossos primos, o que sonham ainda não se sabe), a infinita gama das emoções e sentimentos humanos, neurose e loucura.

Além do recalque e do complexo de Édipo, criação freudiana primordial é o conceito de pulsão em oposição ao de instinto. Mas não é um psicanalista, e sim o primatologista mais conhecido, que, falando de nossos primos, descreve:

A beleza de um sistema de respostas emocionais sobre um sistema instintual é a de que seu resultado não está escrito em uma pedra. O termo 'instinto' refere-se a uma programação genética que diz aos animais, ou seres humanos, como agir de um modo específico sobre circunstâncias específicas. As emoções, por outro lado produzem mudanças internas, juntamente com a avaliação da situação e o julgamento das opções. Não está claro se os seres humanos e outros primatas possuem instintos no sentido específico, mas não há dúvida de que possuem emoções. [...] uma interface inteligente que media entre a entrada (input) e saída (output) tomando por base o que é mais importante para o organismo em determinado momento (WAAL, 2013, p. 152-153).

 

Conclusão: o schizo humano

As pesquisas sobre os grandes primatas, posteriores à obra freudiana, podem subsidiar hipóteses instigantes do fundador da psicanálise. Não é exclusividade nossa o comentário de que, tendo a linhagem humana se separado daquela dos antepassados dos chipanzés e bonobos, que só depois se dividiram em duas espécies, os seres humanos partilham uma mistura das características dos dois primos. Basta reler os parágrafos acima. Somos tanáticos como os chipanzés e libidinosos como os bonobos.

Ou quase tão libidinosos. Ao contrário dos de nossos primos que agregam dezenas e pouco mais de uma centena de indivíduos, os grupamentos passaram da ordem da centena, chegando ao milhar e hoje são da ordem de milhões. Além da linguagem hipercomplexa, a organização social exigiu novas formas de recalque tanto da sexualidade quanto da agressividade que, segundo Freud foram utilizadas através dos processos sublimatórios, a favor da cultura.

Mas as formas de repressão sexual extrema, tal como a preconizada pelos monoteísmos, principalmente na doutrina católica, de relações sexuais exclusivas para a reprodução, e sem concupiscência, só seriam possíveis se fôssemos chipanzés. Modo de repressão, bem seja lembrado, historicamente recente (LOPES, 2011). Podemos acrescentar que o monoteísmo teria surgido como derradeiro meio de o patriarcado manter seu domínio. Se estudos contemporâneos buscam explicar como funcionam, também há que repensá-los em sua gênese. Mais do que a coerência de sua obra, houve uma intuição de Freud nessa direção, que o conduziu a dedicar seus últimos escritos à crítica radical de ambos. Mesmo assim, a lei paterna tal como apresentada por Freud e Lacan, que muitas vezes descambou em defesa de ideias grotescas, necessita de uma revisão crítica ainda mais cuidadosa.

Mesmo que fosse possível uma sexualidade restrita à reprodução, como defendem algumas religiões, temos de lembrar que os chipanzés não são monogâmicos. A relação da diferença de tamanho entre os dois sexos nos seres humanos conduz à afirmação tenazmente defendida por Ryan e Jethá (2010) de que não somos uma espécie exclusivamente monogâmica, mas — discretamente ou não tanto — pol&iaciacute;gama. A empedernida defesa freudiana da bissexualidade, hoje anátema até para organizações de defesa dos direitos homossexuais, encontra eco na ancestralidade comum aos bonobos.

Por outro, a passagem à savana, à semelhança dos chipanzés, conduziu a um reforço das tendências agressivas, visto que o sucesso demográfico dos seres humanos funcionou, apesar de seu preço altíssimo em termos de guerras e destruição do meio ambiente.

De um lado Maquiavel, Sade, Nietzsche e o Freud mais pessimista; do outro, Freud em sua vertente mais light, Kinsey, Lennon e algumas feministas. Decididamente somos uma espécie que precisa de psicanalistas.

 

Referências

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FREUD, S. Civilizaton and its Discontens. In: The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, v. XXI. London: The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1978.

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KANO, T. Last ape: pigmy chimpanzee behavior and ecology. Stanford University Press, 1992.

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Endereço para correspondência
Rua Marechal Mascarenhas de Morais, 132/308
Copacabana
22030-040 - Rio de Janeiro/RJ
Página: http://www.anchyses.pro.br
E-mail: anchyses@terra.com.br

Recebido: 10/09/2013
Aprovado: 29/10/2013

 

 

SOBRE O AUTOR

Anchyses Jobim Lopes
Médico e Bacharel em Filosofia pela UFRJ. Mestre em Medicina (Psiquiatria) e em Filosofia pela UFRJ. Doutor em Filosofia pela UFRJ. Psicanalista. Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ). Presidente do CBP-RJ nos biênios 2000-2004 e 2008-2012. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) 2004-2006. Professor Titular II do curso de Graduação em Psicologia e Especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica da Universidade Estácio de S&aaaacute; (UNESA).

 

 

1 Trabalho parcialmente apresentado no XX Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise e XXXI Jornada de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, Belo Horizonte, 26/28 de setembro de 2013.
2 Os temas do olfato, do bipedismo e sua relação com a repressão são retomados várias vezes, até serem extensamente discutidos em O mal-estar na civilização, publicação de 1930 (FREUD, 1978). Há que tomar cuidado com a imprecisão dos termos repressão (Unterdrückung) e recalque (Verdrändung), ainda mais nas edições brasileiras, calcadas na inglesa e que traduzem ambos os termos por ?repressão?. Em princípio repressão diferiria de recalque por ser este último inconsciente, contudo mencionam Laplanche e Pontalis no Vocabulário de psicanálise que repressão ?é um termo cujo uso é mal codificado? (1978, p. 419). Apesar de nos atermos no presente texto ao termo ?repressão? quando supomos que difere do recalque no texto freudiano, a descrição de Freud sobre olfato e bipedismo relata uma conduta que é inconscientemente determinada.