ANCHYSES JOBIM LOPES *  




Contribuições de uma Teoria da Leitura e de uma Nova Estética Para a Educação

A leitura além do acesso de novas informações, a leitura para que se reconheça o outro como um fim em si mesmo.

Publicado em: Leitura: Teoria e Prática - Revista da Associação de Leitura do Brasil / apoio Faculdade de Educação - UNICAMP, Campinas, nº 31, Julho 1998.



Introdução
Da mesma forma que o termo filosofia engloba imensa gama de autores, escolas e perspectivas, uma de suas mais belas disciplinas - a estética - possui sua riqueza em sua diversidade. Possuindo por meta ser tarefa da filosofia a perene busca por suas origens, e em tal busca sempre encontrar algo novo, ousaremos a proposta de uma nova estética. Uma estética que fundamente um humanismo, não no sentido do antigo humanismo idealista, mas de um retorno a valores que fundamentem de modo crítico uma práxis. A fundamentação, permitindo a renovação da práxis, pode fornecer subsídios para abrigar, proteger e ampliar o espaço deste que é o mais importante entre os bens comuns: a educação.

É tarefa da filosofia da educação tratar das questões epistemológicas, axiológicas e antropológicas concernentes à educação. Para que uma antropologia possa ser considerada filosófica, deve, por um lado, ir além do conhecimento empírico e dos dados das ciências regionais, em direção ao grau de generalização e abstração necessários ao conhecimento filosófico, assim como, por outro, também procurar responder, mesmo que de modo parcial, às principais questões da filosofia. A proposta de uma nova estética, compreendida como parte essencial de uma antropologia filosófica, deve desenvolver-se sob a forma de uma epistemologia da emoção e percepção estéticas: uma epistemologia que tome por ponto de partida dados de saberes específicos, mas siga em direção ao grau de generalização e abstração próprios do conhecimento filosófico. Assegurado tal pressuposto epistemológico pode-se ousar a formulação de várias possíveis contribuições da estética para a educação. De modo análogo a fundamentação epistemológica será o primeiro passo para o embasamento de uma ética.

O trabalho que desenvolvemos na área da estética, em atividade teórico-prática docente e de pesquisa, em parte já publicado (Lopes, 1996), tem priorizado a literatura, principalmente a poesia, sendo caracterizado como uma Teoria da Leitura. Para tal utilizamos as contribuições da psicanálise e da fenomenonologia.

O ponto de partida do presente artigo é a análise da imagem poética. A partir do delineamento do processo de criação da imagem poética na leitura, amplia-se a proposta para a de uma epistemologia de qualquer forma de imagem em arte. Descrita a fundamentação epistemológica foram esboçadas algumas propostas para contribuições da estética na educação. Como etapa seguinte procuramos demonstrar de que forma cada etapa da gênese da imagem poética, tanto através da leitura, quanto por meio da construção da imagem na arte em geral, corresponde a uma das etapas necessárias à construção de uma ética.

A Proposta de Uma Teoria da Leitura e de Uma Nova Estética
Não nos restringimos à poesia tal como hoje é usualmente definida: composições quase sempre curtas e escritas em verso. Utilizando a análise fenomenológico-existencial, conceituamos enquanto essência e intencionalidade da poesia o fenômeno lírico. A essência desse fenômeno constitui na construção do "espaço" intra-subjetivo ou "eu" lírico, que é criado ou recriado por meio da linguagem. Como foi assinalado por Heidegger (1983,1986), linguagem que, ao se meditar sobre a filosofia, necessariamente leva a que se discuta a relação entre poetar e pensar; o ato de pensar em sua essencialidade como forma de criação - poesis -, a poesia como caminho de reflexão conduzindo alem dos limites do que pode ser expresso pela palavra.

Em poesia, a linguagem constrói-se por meio de um conjunto de som, ritmo e imagem. Priorizamos a imagem em relação aos demais elementos em que pode ser decomposto o poético. O ritmo apresenta-se não apenas enquanto produto da sonoridade verbal, mas basicamente como dinâmica de temporalidade construída pelo processo de criação da imagem. Mais que simples representação plástica em nossa consciência, a imagem possui o dom de unir em si um ou mais conteúdos ideativos. Tais conteúdos não são idéias abstratas e desencarnadas, e sim idéias que se apresentam em si mesmas e de modo harmônico como estados afetivos. Uma vez que nossas emoções também são estados corpóreos, que a pulsão e o inconsciente - de onde origina-se toda psyché - existem enquanto criação do corpo e nele são refletidos, o dom da imagem é unir no instante poético sujeito e objeto, emoção e razão, corpo e mente. Escreveu Paz (1991): a imaginação é o corpo em movimento.

A imagem desvelada por meio do poema apresenta-se não como estática, mas dinâmica, em contínua metamorfose, tanto em si mesma, quanto de uma imagem em outra. A linguagem poética, procurando alcançar o mais próximo possível a linguagem originária, tornando-se análoga à da criança e do louco, tem por mérito transmitir e universalizar a imagem poética. Através da imagem, as idéias e emoções evocadas apresentam-se em harmonia de conteúdo e forma, colocam o eu do leitor-receptor em sintonia com o do autor-transmissor, transcendendo o individual em um eu-lírico universal. A linguagem poética torna-se capaz de desencadear no leitor ou ouvinte uma série quase infinita de associações.

Ao trabalhar com a imagem poética, encontramos suas semelhanças e diferenças com a imagem onírica. À semelhança do sonho, a imagem poética é mutável, não representa realisticamente e sim por meio de deslocamentos e condensações, ou seja, por meio de metáforas e metonímias. Por sua capacidade dinâmica, utilizando figuras de linguagem representadas plasticamente, tanto o sonho quanto a poesia constróem símbolos. Permitindo acesso ao inconsciente, as imagens onírica e poética possuem o dom de fecundar a imaginação e a criatividade.

A principal diferença encontrada entre a imagem onírica e a imagem poética é a transmutação e universalização da imagem por meio da palavra na poesia. A linguagem, cuja própria essência, tal descreve Heidegger, funda-se no poético, universaliza a imagem. Deste modo torna-se possível trabalhar com o poético onde quer que ele se encontre: nas páginas de um romance, na oralidade da contação de histórias, ou do teatro, ou até mesmo de um texto filosófico. Da mesma forma que o poético transcende o poema em sua acepção usual, é possível transpor essa forma de compreensão da imagem para demais formas de manifestação artística. Foi previamente utilizada a definição contemporânea do conteúdo da estética: enquanto busca pela compreensão da natureza ou características comuns encontradas na percepção dos objetos que provocam a emoção estética.

Em qualquer forma de arte, através dos mais variados meios e técnicas - linguagens não-verbais - é a imagem o desencadeante desta emoção. Ao falar de imagem, pensamos quase sempre em visão. Contudo, imagem pode ser definida como conjunto perceptivo, seja em qualquer um de nossos sentidos, seja em nossa imaginação. Mesmo no caso da música podemos falar em imagem, não apenas de imagens visuais ou lembranças evocadas por meio da composição, o que constituiria simples "música de programa", mas sim da composição enquanto imagem sonora. Tal universalidade permitiria generalizarmos que as várias imagens, evocadas por qualquer objeto artístico, constroem a intencionalidade da emoção estética, que constitui a chave para uma possível definição contemporânea do que seja a própria estética.

À semelhança da imagem onírica, as várias imagens da poesia e da arte não obedecem às leis usuais de construção do pensamento em nossa consciência. Como o sonho, não há relação com a temporalidade cotidiana. O tempo da obra de arte é o tempo de construção de sua imagem, ou da metamorfose de uma imagem em outra. Desaparece também o princípio de não contradição que rege nosso pensamento consciente (algo não pode simultaneamente ser seu oposto), como em alguns quadros de Picasso, em que perspectivas múltiplas e opostas podem coexistir sem contradição. O que deve ser priorizado, dentre as várias direções em que a análise fenomenológico-existencial da emoção estética pode conduzir, é a de sua vivência ao existencialmente modificar-nos, - modificação que pode ser descrita através da metáfora de um jogo de olhares. Não somos nós somente que olhamos a obra, ela também nos espreita. O olhar da própria obra é essencial à nossa constituição enquanto sujeito. Assim como nosso eu individual necessitou do olhar dos outros para, desde o nascimento até hoje, constituir-se como subjetividade, o eu transcendental desencadeado pela emoção estética através da imagem também necessita do outro, que é o olhar da obra de arte.

Em ambos casos esse olhar do outro mostra-se como parcialmente opaco à nossa vontade: não posso dominar a sua direção, o seu interesse, o seu desejo. Alguma semelhança ou interesse nos atrai a este olhar do outro, mas simultaneamente revela o quão diferente é de nós mesmos, diferença que se revela através um sentimento de estranheza. Este estranhamento surge por meio de um duplo movimento: primeiro, da percepção através do outro de nosso limite; segundo, da percepção do outro enquanto alteridade radical. Desse sentimento de estranheza, além de ser surpreendido pelo olhar do outro, produz-se a descoberta de que se é aquele que também olha, que emerge em uma nova categoria, que mais que algo é ser alguém.

Mas, se a percepção deste jogo de olhares também significa espaço, falta, distância entre quem olha e quem é olhado, em um mítico - por imensurável e ínfimo - momento posterior percebemos que, desde o início de nosso ato de olhar, sem que nos apercebêssemos, um terceiro movimento vinha ocorrendo: que colocamos para dentro de nós o olhar do outro, que gradual ou rapidamente fundimo-nos com este olhar. Perdemos o limite, a separação entre o eu e o outro que o próprio olhar estabelecera em um primeiro momento. Mas não se trata da indistinta situação inicial, em que de modo caótico inexistíam um eu e um outro. Agora que experimentamos o limite e a alteridade, identificar-se e colocar dentro de si o olhar do outro é transformar-se nele, mantendo sua diferença e subjetividade. Transformar-se é ver com os olhos do outro, vivenciar de modo concreto sua experiência, o que popularmente é denominado colocar-se dentro da pele de alguém. Por possibilitar ele esta transformação podemos designar o poeta, assim como a todo e qualquer artista, como o guardião das metamorfoses (Canetti, 1990).

Entretanto, vamos além da metamorfose no outro e da transformação de nosso olhar no da obra de arte. Também sofrermos o processo que a psicanálise denomina de identificação ou de identificação projetiva (Klein, 1980), por meio do qual colocamo-nos dentro da pele de quem gostamos muito. Mas isto ainda permaneceria ao nível das relações pessoais, no plano do individual e subjetivo. A imagem e a emoção estéticas conduzem a um salto. Através do outro, que se generaliza por meio da obra de arte, sendo este o talento do artista, descobrimos o universal. Por um instante, que tanto pode ser lembrado depois como breve ou longo, pois revela-se como atemporal, experimentamos uma fusão além daquela fusão com o outro enquanto sujeito. Constitui-se um processo mais abrangente de metamorfose, a que Nietzsche denominou dionisíaca: colocamo-nos além de toda a individualidade, além de todo o subjetivo; somos tomado por uma percepção do incomensurável, por um sentimento oceânico. Através do dionisíaco podemos universalizar a experiência humana, comungar com a humanidade e o mundo, sentir a natureza. Após o arrebatamento dionisíaco, instante mítico, novamente re-flete o olhar, o eu volta a ser a fonte e sede da qual se mira o mundo. Constitui-se o quarto movimento em que podemos analisar fenomenológico-existenciamente a leitura e a emoção estética. Recuperamos a individualidade, retornamos ao limite, ao contorno e à distância do olhar. Utilizando os termos de Nietzsche (1992), em oposição ao dionisíaco, retornamos ao apolíneo. Entretanto, este estado de diferença e subjetividade, esta volta ao apolíneo foi modificada em relação ao estado inicial. Tendo sofrido, mesmo que por breve instante, uma fusão, uma metamorfose de nosso olhar no da própria obra, agora nos vemos como ela nos vê. Ao nos vermos através do olhar do outro, internalizando e experimentando como nosso esse olhar, modificamo-nos para sempre, incorporamos algo verdadeiramente novo, compreendemo-nos melhor. Mas também incorporamos à nossa subjetividade a do outro como aquele que possui outros desejos, motivações, difere de nós, mas é tão real e pleno de existência quanto nós mesmos. Agora o outro não é apenas um espectro, ou apenas um olhar opaco ao nosso. A lembrança de ter vivenciado o que é estar na pele do outro foi incorporada, assim como também assimilada à experiência universalizadora do dionisíaco. Apenas por meio deste movimento existencial há possibilidade de melhor auto-compreensão, da mesma forma que somente a incorporação do olhar do outro ao nosso permite que se estabeleça a crítica.

Desse modo, semelhante à análise fenomenológico-existencial da poesia, podemos refletir sobre o ritmo da construção da imagem artística, ou da metamorfose de uma imagem em outra, enquanto desencadeadora de um processo análogo em nosso eu, que a partir de Kant (1984) pode ser compreendido como uma sucessão ininterrupta de um fluir de associações. Por meio da vivência trazida pela obra, metaforicamente descrita pelo jogo de olhares, também se desencadeia neste eu, além de seu fluir usual, um infinito labirinto de outras associações, conscientes ou não. Descubro estados, lembranças, fatos, emoções que desconhecia.

Entretanto, a emoção estética produz algo além da vivência através dos olhos de outro, ou das associações de idéias e afetos. Um dos dons da poesia e da arte é o de, através da imagem presentificada, produzir uma unidade na pluralidade, um todo. Nesta capacidade de síntese, de capturar através de algum meio o uno, reside o talento do artista, talento que permite ser a emoção estética muito mais que a experiência do outro e de seu conhecimento, mas um jogo de identidade e diferença. Por meio da emoção estética, integro a mim outros eus, o mundo, a existência e seu sentimento de unidade. A emoção estética constrói uma vivência cujo contato amplia e transmuta o eu para novo patamar. Existencialmente podemos, então, superar as várias dicotomias que cindem a natureza humana: sujeito/objeto, corpo/mente, inteligível/sensível, natureza/cultura, entre outras cisões criadas pelo pensamento metafísico ocidental. Associados à experiência do dionisíaco, a percepção e o sentimento de unidade na pluralidade permitem ao eu - individual, pessoal e ligeiramente incomunicável - então atingir a dimensão de um eu maior, que kantianamente podemos definir como transcendental, universal.

Algumas Propostas Para a Leitura e a Arte na Educação
Esta proposta de análise fenomenológico-existencial da obra da poesia e da arte, que prioriza a leitura e a imagem enquanto construtoras da intencionalidade da emoção estética, pode fornecer algumas idéias para os muitos desafios com que se defronta a educação.

Apesar de que, em um primeiro instante a obra possa nos parecer fragmentada ou abstrata, a experiência estética, desde que ocorra de modo pleno, em si mesma termina por produzir a percepção de uma unidade, de uma totalidade orgânica - percepção que não necessariamente necessita ser consciente (provavelmente não o é na maioria das vezes). Mas o sentimento de integração ao eu de um novo saber, causando uma maior integração do próprio eu, seria uma das causas psicológicas da satisfação que ocorre em toda emoção estética. Em um novo patamar, compreendemos mais amplamente e com menos esforço a nós e ao mundo. Mesmo quando o texto ou o objeto artístico inicialmente parece-nos inumano, cruel, grotesco ou absurdo, a dinâmica de sua própria intencionalidade resgata algo perdido ou desconhecido da experência humana.

Deste modo, a própria natureza orgânica da emoção estética ajudaria em si mesma a contrabalançar a fragmentação trazida pelo vertiginoso crescimento da informação e da técnica. Da mesma forma que o conhecimento contemporâneo cresce de forma exponencial, a arte também o faz. Contudo, a despeito do desenvolvimento dos meios, de novas modalidades de expressão e até de novos tipos de objetos artísticos, a natureza da arte é em sua própria essência contrária ao processo de fragmentação do saber do qual padece o mundo contemporâneo. Seja como essencial ao ensino desde o primeiro ao terceiro grau em todas disciplinas, mesmo naquelas supostamente apenas técnicas, a leitura, por sua natureza necessária tal como foi descrita, é o que pode fecundar qualquer conhecimento capaz de além de reproduzir-se também crescer qualitativamente. Seja como conteúdo das discilinas específicas, para formação discente e também docente - educação artística, metodologia da educação, história da arte, entre outros - os conteúdos da estética fundamentam e fecundam todos demais conteúdos programáticos. A natureza necessária da leitura, pelo caráter de sua própria essencialidade, bem como dos conteúdos da estética em si mesma opõe-se à redução do educador em simples transmissor de informação, a um mero técnico a adestrar mão-de-obra para o mercado de trabalho.

O texto poético e a obra de arte são sempre humanos, ou um retorno à humanidade, e tornam o ser humano indispensável. A máquina pode veicular quantidades quase infinitas de informação. Contudo, propiciar a emoção estética não é simplesmente colocar alguém diante de um texto ou de um objeto supostamente artístico, mas enriquecer aptidões, desenvolver o prazer e o amor por algum tipo de conhecimento (o que em si mesmo também é uma forma de arte), propiciar condições para novos experimentos e experiências, transmitir o interesse pela essência viva do legado de gerações passadas. Em tudo isto, nada pode substituir a presença efetiva de outro ser humano. Somente deste modo pode-se assegurar de que o ensino não se constitui em simples transferência de conhecimento, mas sim em criar as possibilidades para sua produção ou sua construção ( Freire, 1997).

A intencionalidade e a essência da imagem e emoção estéticas por si mesmas constroem uma nova proposta humanista. Através da Arte, o sublime, o espantoso, o grotesco, o feio, inserem-se na dimensão do humano ao mesmo tempo que na do universal. Mesmo a mais abstrata das manifestações artísticas constrói algum dos infinitos prismas da existência humana. Nesta análise da essência da Estética não se pode falar de desumanização da arte, mas do resgate das mais diversas e até mesmo mais assustadoras características do ser humano. Se há manifestações artísticas que evocam agressividade ou desespero, constroem um modo de conhecimento, de integração à natureza humana, mas não uma aceitação passiva. Como veremos melhor, trata-se de um processo de aceitação crítica da natureza humana, primeiro passo para combater ou minorar seus efeitos deletérios.

Simultaneamente, uma vez que é da essência da imagem e emoção estéticas o resgate do ser humano, a fundamentação dos conteúdos da educação a partir da leitura e da arte constrói por si mesma a proposta de criação de um novo humanismo, não somente no antigo sentido idealista mas, como foi assinalado, de um retorno a valores que fundamentem uma práxis.

Sendo a criatividade comum a toda natureza humana, estimulá-la constitui parte integral de qualquer proposta humanista. A redução do ensino a mera transmissão de técnicas, a atrofia do educador como mero transmissor de informação, com o único propósito de adestrar mão-de-obra para o mercado de trabalho, possui como consequência necessária o definhamento das aptidões criativas inatas do aluno. Aristóteles já conceituara como monstruoso, não o que julgamos feio ou grotesco, mas a forma que é impedida de atingir sua plenitude. Uma vez que a criatividade participa da natureza de todo ser humano, atrofiá-la é produzir monstruosidades.

O acesso privilegiado da poesia e da arte ao inconsciente por meio da imagem, a tornam essenciais a qualquer processo criativo em educação. A passagem do inconsciente ao sistema consciente/pré-consciente - que não pode ocorrer sem o acréscimo da palavra -, tal descreveu Freud (1978), torna-se o fio condutor que torna a leitura verbal em essencial para leituras não-verbais, e não ao contrário como é frequentemente proposto. A questão da leitura do texto amplia-se na das leituras, possibilidades infinitas de criação de imagens. Tanto os conteúdos das displinas que veiculam e ampliam a alfabetização, bem como das que tem por meta ampliar tanto a leitura quanto a criação de textos, bem como os conteúdos de disciplinas que envolvem a educação artística, a história da arte, a metodologia e a didática, são essenciais ao enriquecimento de predisposições e a possibilidade da criação de novas aptidões.

A natureza da imagem e da emoção estética pode em si mesma responder a outro dos desafios atuais da educação: auxiliar a trans e a multidisciplinaridade. Ao desencadear no eu um labirinto infinito de associações, conscientes ou inconscientes, ao mesmo tempo que externamente o próprio objeto, em uma tendência ainda mais acentuada nos dias atuais, também sempre remete a outros objetos, a obra de arte possui intrínsica à sua natureza ser multivetorial. A essência da emoção estética opõe-se a qualquer forma unidirecional de pensar e sentir. Não se trata da produção de uma gama de vetores desprovidos de elo comum: um amontoado desprovido de elo comum seria propiciar o beletrismo. Ao contrário, a natureza orgânica da imagem fornece ao diverso uma percepção da unidade na qual se encontra. Trata-se da noção essencial à filosofia, desde seus primórdios de determinar o múltiplo em um todo. A determinação do diverso na unidade, a que se propõe a tarefa do pensar filosófico, constitui um dos principais auxílios da filosofia à educação. Contudo, há de se atentar à acusação de totalitarismo que é feita contra a própria filosofia. Como enfaticamente assinalam Horkheimer e Adorno (1989), há de se escapar da excessiva sistematização de um Kant ou Hegel. Constitui parte da essência da estética servir de método contra o excesso e a paranóia do sistema filosófico. A dinâmica da imagem e emoção estéticas - desencadeando um labirinto infinito de associações intra e intersubjetivas - é contrária ao excesso de sistematização do pensamento. Não existe rede grande o bastante para abarcar o infinito.

Do mesmo modo, a imagem e emoção estéticas são potencialmente catalisadoras para a formação do generalista, para produzir uma visão global, indispensável ao profissional trans ou multidisciplinar hoje vital nas mais diversas áreas. As disciplinas mencionadas, em todos níveis do ensino, devem apresentar em seus conteúdos o objetivo de proporcionar a maior variedade possível de experiências e técnicas. Pois é da própria natureza da construção da imagem poética, ao criar seu labirinto de referências e associações, dentro e fora do sujeito, remeter a outras experiências, técnicas e emoções.

Apenas por meio desta variedade e de sua assimilação de forma coerente, podem ser percebidas as falhas e os limites de um paradigma. Contrastar um paradigma com outros, constitui o primeiro passo para superá-lo. Para que se ultrapasse a crise, que segundo Kuhn (1978) termina por minar todo o conhecimento desenvolvido por um paradigma, há de se associar este primeiro passo ao seguinte, que constitui um pensamento horizontal, englobante, utilizando-se dos mais variados saberes. Só deste modo pode ser fecundado um novo paradigma.

Conclui-se que também pertence à dinâmica da poesia e da arte, além de incentivar a criatividade, permitir a trangressão dos modelos instituídos. Pertence à própria essência da emoção estética, construída pela imagem através do movimento de seu olhar - revelando identidades, limites e diferenças - ser potencialmente catalisadora deste processo de trangressão - motivo pelo qual, desde Platão na República, existem a intolerância e a tentativa de qualquer regime totalitário censurar, cercear e até banir a manifestação artística. Desta forma, em uma dimensão ainda mais abrangente, por meio da criação de um novo paradigma, pode-se ultrapassar a idéia de que o ensino seja mera transferência de informação, e considerá-lo, sim, a criação de possibilidades para sua produção e construção.

Possíveis Contribuições Para a Ética da Educação
Entretanto, ainda permanece uma das questões mais essenciais: de que modo podem a leitura e a arte fundamentar a ética e a educação? Este movimento de fundamentação pode ser caracterizado em várias etapas, complementares aos movimentos analisados de dinâmica da imagem e da emoção estéticas.

Em um primeiro movimento de análise da emoção estética, no instante em que o olhar da imagem - o olhar do outro - produz o espanto, percebemos que esse olhar também significa espaço, falta, distância entre quem olha e quem é olhado. A percepção deste limite quebra o que Freud (1978) nomeou narcisismo primário e que, por referência ao mito de Narciso, é o amor exclusivo à imagem de si mesmo. A ferida narcísica que constitui a percepção do outro, dos limite do eu, constrói o primeiro passo para a humildade, para o respeito ao próximo, para a inserção no social. Em um segundo instante da análise fenomenológico-existencial, percebemos que, ao vivenciar o outro enquanto alteridade, assim como ao proporcionar a maior diversidade possível de referências e associações, dentro e fora do sujeito, produzindo um efeito mulitiplicador sobre sua própria essência, a dinâmica de emoção estética traz em seu bojo uma proposta política. A diferença que se revela por meio do olhar do outro, o infinito labirinto de associações internas e externas, conduzem à percepção de que a diversidade humana é infinita, que sua realidade sócio-política é múltipla, variada, mutável ao longo do tempo e do espaço.

Trata-se de uma direção oposta à de se ter primeiro uma idéia ou concepção de um sistema e aplicá-la ao múltiplo. Ao reduzir tudo a um sistema, isto é, partir-se do todo para o diverso, termina-se por violentar a natureza dos objetos, do mundo e do ser humano; constrói-se a base de um pensamento autoritário. A proposta filosófica, fundamentada por meio da emoção estética, constrói a unidade a partir do múltiplo, dando sempre espaço a que se perceba que o todo não apresenta contornos precisos, traços absolutos, que não deve ser excludente, mas tolerar a diferença e a particularidade. Desenvolver esta proposta constitui ampliar a tolerância sem contudo dissolvê-la em um pensamento acrítico. Perceber a multiplicidade da natureza humana, bem como a transformação da realidade sócio-política no tempo e no espaço, difere de justificar a desigualdade social como inevitável, ou que o pluralismo seja mera consequência das leis de mercado.

No terceiro instante de análise do movimento do olhar construído pela emoção estética, em que coloco dentro o olhar do outro, transformo-me no outro. Por um mítico momento, perco o limite, a separação entre o eu e o outro que o próprio olhar criara. Através da metamorfose no outro, podemos existencialmente vivenciá-lo. A leitura e a arte possuem o dom de tornar tal experiência de singular em universal - mas neste mínimo instante, tal usualmente se diz : coloquei-me na pele de alguém. Este colocar-se dentro da pele de alguém, universalizado pela emoção estética de um alguém individual para um alguém universal, fundamenta o imperativo categórico kantiano.

Mas não se trata mais de uma fundamentação teórica, e portanto questionável, do imperativo categórico kantiano, e sim de um processo existencial. Tendo estado dentro da pele do outro, reconheço-o como um fim em si mesmo e não simplesmente como um meio para alcançar meus objetivos. Tendo ultrapassado o singular em direção ao universal, posso generalizar uma máxima pessoal em uma lei universal.

Por meio do quarto movimento da análise fenomenológico-existencial da dinâmica da imagem e emoção estéticas, completa-se a fundamentação ética. A identificação e a incorporação do olhar do outro ao nosso, que agora permitem que nos vejamos de modo novo, estabelecem a base para a crítica, para que esta crítica dirija seu olhar tanto a nos mesmos, quanto ao mundo. Sem incorporar o olhar do outro, toda crítica em realidade constrói-se enquanto pseudo-crítica: apenas reduzimos tudo tomando a nós mesmos, nossa classe social e ideologia como medida para todos e tudo.

Contudo, sem o sentido de unidade a que previamente conduz a emoção estética, sem a possibilidade de integração em um todo coerente mas não dogmático ou totalitário, a crítica permaneceria primordialmente auto-referencial e ideológica. Sem o fenômeno existencial de, por meio da metamorfose da arte, ter experimentado na pele do outro sua realidade, a incorporação do olhar do outro não apenas teria sido impossível, como poderia permanecer no domínio do puramente teórico e não do concretamente vivido. O movimento de percepção da alteridade, que se inicia no espanto da percepção do olhar da obra enquanto olhar do outro, só se completa quando, ao metamorfosear-me nele, vivo sua experiência e, depois, ao assimilarmos dentro de nós seu modo de olhar.

Os vários movimentos por meio dos quais a imagem e a emoção estéticas instauram uma dimensão ética e possibilitam um pensamento crítico, respondem parcialmente ao desafio de uma contribuição para a fundamentação ético-política da Educação. Contudo, a proposta da estética para este desafio necessita de maior complementação. No século de Auschwitz e de Hiroxima, assim como dos graves exemplos nacionais de um autoritarismo recente e da crescente violência atual, obrigam-nos a uma reflexão ética ainda mais radical. Permanece obrigatória e em aberto a pergunta-título de Adorno (1995): Educação após Auschwitz.

Indubitavelmente as enormes desigualdades sócio-econômicas, bem como os exemplos fornecidos pelo passado totalitário recente e pelas classes dirigentes atuais, respondem por grande parte da violência do Brasil de hoje. A sistemática destruição do papel do estado enquanto fornecedor de ensino necessariamente produz a destruição do principal espaço de formação de cidadania, que é a escola - principalmente a de primeiro grau. Acentua-se como co-responsável o discutível processo de globalização e homogeneização da cultura, apresentado como fatalidade histórica do neoliberalismo, em grande parte constituindo a violentação da identidade e da diversidade do ser humano e de suas sociedades: violência inconsciente e irracionalmente respondida por meio de mais violência.

Entretanto, ainda resta algum substrato da natureza humana que a predispõe à destrutividade. Campos de concentração e artefatos nucleares surgiram no seio das nações supostamente mais desenvolvidas. A todo ser vivo é necessário algum grau de agressividade para a sobrevivência. Seja fruto da natureza ou da cultura, possivelmente ambas multiplicando seus efeitos, o que chama à atenção é que, no caso do ser humano, a agressividade ameaça a própria sobrevivência, individual e da espécie. Somos obrigados a aceitar que em nossa espécie, diferentemente da maioria das outras espécies, algo se associa à agressividade. A descoberta da importância e intensidade do prazer associado à agressividade, transformando-a em sadismo, constitui uma das grandes contribuições de Freud (1978) para uma melhor compreensão do ser humano.

A denúncia trazida por muitas obras, tal os Os Retirantes de Cândido Portinari, diante da qual sentimo-nos não só arrebatados, mas também tomados por um sentimento de indignação e revolta, exemplifica a importância política da arte. Mas, além de servir de meio para a criação de uma consciência social, a arte e a leitura possuem uma outra função política: um meio de conscientização para que seja reconhecida e aceita a participação do sadismo na destrutividade humana - conscientização que é o primeiro passo para que se possa minorar esta destrutividade, levando à efetiva modificação do real.

O prazer estético, produzindo o sentido de unidade que integra o diverso em um todo coerente, bem como a dinâmica de limite, alteridade, metamorfose e crítica, possibilitam a conscientização e a incorporação ao eu de um sadismo neutralizado de efeitos concretos. A violência, desprovida de outro sentido que a satisfação imediata, divulgada através dos meios de comunicação contemporâneos, acentua morbidamente o sadismo. Tal tipo de violência é condutora da busca, crescente em intensidade e freqüência, por tal tipo de satisfação. Cumpre-se o dito psicanalítico de que se repete ativamente tudo o que se sofre passivamente. Ao contrário, sublimada por meio da poesia e da arte, o sadismo e a destrutividade podem transformar-se em seu oposto: em criatividade. Que o digam Franz Kafka, Louis-Ferdinand Céline, Sylvia Plath, Nelson Rodrigues.

Associada à experiência vivida de que o outro constitui um fim em si mesmo e não apenas um meio para atingir meus objetivos, ao desenvolvimento de um pensamento crítico, à conscientização social, a percepção da importância e do perigo do sadismo sensibiliza e é capaz de desenvolver no ser humano, talvez, o único baluarte possível ao uso coercitivo e inescrupuloso do conhecimento. Esta é a proposta ao desafio que perpassa o ensino desde a Antigüidade, o de que a virtude, o único bem realmente importante, só pode ser transmida através de um processo dialógico. No entanto, não se trata de um diálogo conceitual apenas, mas de um diálogo existencial, só possível por meio da leitura e da arte.

Conclusão
A tarefa da filosofia não é a de fornecer soluções definitivas. Tal era o objetivo da construção dos antigos sistemas filosóficos. Foi mencionado que tais sistemas hoje são encarados como modelos demasiado abrangentes, tendentes a um pensamento totalitário e até delirante.

Apesar de ter sido Kant (1982) o criador de um dos maiores sistemas filosóficos, portanto passível da acusação acima, as quatro perguntas às quais resumiu a tarefa da filosofia permanecem a melhor síntese desta : O que posso conhecer ? - questão da epistemologia; O que devo fazer ? - questão da ética; O que me é permitido esperar ? - questão da metafísica em sua acepção mais usual; três questões que remetem a uma quarta: O que é o homem ?. A tarefa da filosofia é manter permanentemente em aberto estas questões que possivelmente jamais admitirão uma resposta definitiva. Manter-se a salvo de uma resposta que se proponha como definitiva é manter-se a salvo de um pensamento totalitário, dogmático e mítico.

Pergunta-chave de uma antropologia que se suponha filosófica - O que é o homem? -, cuja resposta é infinita e desconhecida, tratando-se da questão da qual a Esfinge, ao jogar-se no abismo tornou Édipo seu herdeiro, permite apenas o esboço de uma resposta poética. Como assinalou Morin (s.d.) o ser humano é o ente que sonha mais que todos outros, e estende à vigília seu invento e que, portanto, ainda não terminou a tarefa da criação.

A proposta de uma teoria da leitura condutora a uma estética a partir do método psicanalítico e do método fenomenológico-existencial necessariamente permanece incompleta e em aberto. O aprofundamento teórico, bem como a validação prática desta proposta no campo da educação, necessitam de pesquisa, teórica e de campo. Mesmo aprofundada por tais pesquisas, deve permanecer sempre enquanto uma proposta incompleta para uma estética - até quando, de acordo com a descrição de Kuhn (1978), o próprio modelo conduza a seu limite. A mesma incompletude que abarca este modelo também assinala para o limite de outros, e até mesmo para o limite para os usos da leitura e da arte na educação. Acima de tudo deve-se recear o perigo de extrapolar a estética em esteticismo, ou seja em culto religioso disfarçado da manifestação estética. Tomando o papel de uma pseudo-religião o esteticismo necessariamente torna-se acrítico e dogmático.

Face ao lastimável estado em que se encontra a educação em nosso país, torna-se imperioso minorar a curto e médio prazo as situações criadas pelos desafios mencionados. É necessário ser restabelecido o direito básico do acesso à educação para todos, papel do estado enquanto provedor desta educação, bem como da escola como fonte de cidadania. Mas, principalmente, diante do quadro lamentável em que se encontra a educação em todos níveis, mais necessário torna-se o importância da leitura, mais imperiosa participação da arte para fundamentar uma ética construtora de cidadania.

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* Anchyses Jobim Lopes, Médico (UFRJ), Mestre em Medicina (UFRJ), Doutor em Filosofia (UFRJ), Psicanalista e Membro Efetivo do Circulo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ
Publicado em: Leitura: Teoria e Prática - Revista da Associação de Leitura do Brasil / apoio Faculdade de Educação - UNICAMP, Campinas, nº 31, Julho 1998.