ANCHYSES JOBIM LOPES   





Édipo e Seus Mitos - Mais de Um Século

Artigo sobre o mito e sua significação para a psicanálise e como resposta a algumas das principais críticas que lhe são feitas.

Publicado no Boletim Científico, Associação Psicanalítica de Nova Friburgo, nº 02, ano II, Nova Friburgo, Março 2001.



Tirésias: Verás num mesmo dia teu princípio e fim.
Édipo: Falaste vagamente e recorrendo a enigmas.
Tirésias: Não és tão hábil para decifrar enigmas?
Édipo: Insultas-me no que me faz mais venturoso.
Tirésias: Dessa ventura há de vir tua perdição.
Édipo: Mas salvei esta cidade:, é quanto basta.
Sófocles, Édipo Rei.

Introdução: Édipo e o Fulcro da Psicanálise
Mais de um século após os primeiros escritos psicológicos, tornou-se bastante claro que as idéias de Freud foram muito além de sua proposta inicial: um método científico de investigação e um tipo novo de tratamento. O pensamento freudiano consiste numa extensa articulação teórico-prática, em muito ultrapassando a proposta inicial de ser apenas uma psicologia e uma forma de terapia. A Psicanálise constituiu-se num vastíssimo sistema de pensamento e visão de mundo, possivelmente o maior e mais importante sistema de todo século XX.

Como é necessário a todos os grandes sistemas de pensamento, há de existir uma organicidade, uma coerência interna e uma unidade formal. O pensamento freudiano também se organiza a partir de um elo central. Tal fulcro ou - como poderíamos nomear a partir dos conceitos hoje clássicos de Filosofia da Ciência propostos por Thomas Kuhn (1978) em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas - tal foco paradigmático, constitui a postulação freudiana do Complexo de Édipo (v. Lopes, 1985).

A compreensão freudiana do drama edípico, foco paradigmático do sistema psicanalítico, articula em si: a chave para a compreensão da sexualidade infantil, sem a qual não pode ser explicada a psicopatologia psicanalítica; os conceitos de recalque e de transferência, sem os quais não é possível acesso ao inconsciente dinâmico e à terapia; bem como justifica a concepção freudiana do processo que originou o ser humano enquanto tal, o desenrolar-se de suas explicações sobre o sagrado e a história de seu desenvolvimento intelectual, expostos em Totem e Tabu, Futuro de uma Ilusão, Mal-Estar na Civilização, Moisés e o Monoteísmo ( Freud, 1978) .

Como foi assinalado pelo próprio criador da Psicanálise, críticas periféricas não abalam a solidez do sistema. Ao mesmo tempo, as mais importantes tentativas de refutação partiram sempre em tomar uma parte do sistema pelo todo, ou em tentar tornar a Psicanálise uma psicologia ou uma terapia entre outras. Em todos os casos termina-se por reduzir o Complexo de Édipo à mera particularidade de uma teoria, um cacoete dos psicanalistas. Em sentido contrário, refutar as críticas sobre a leitura freudiana do Complexo de Édipo significa refutar as principais objeções à Psicanálise.

Em relação ao mito de Édipo, com suas variantes, bem como em relação à peça de Sófocles, são encontradas com freqüência muitas críticas ao uso que deles faz a Psicanálise. Tais críticas tanto podem partir de interpretações jungianas, como sintetiza Junito Brandão em obras de peso como a Mitologia Grega (1987) e o Dicionário Mítico-Etimológico (1991,1992), quanto podem originar-se de especialistas renomados do pensamento grego tal Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet em Tragédia e Mito na Grécia Antiga (1977, 1991).

O Relativismo Historicista
Vernant e Vidal-Naquet retomam um tema que lhes é anterior e que, de tempo a tempo, é sempre recuperado: a problemática questão do uso por um autor do século XX, como o fez Freud, de mitos e obras que o antecederam de mais de dois milênios. Esse tipo de objeção indaga se o uso com efeito retroativo de elementos de outra cultura, de outra época com referenciais muito diferentes, não implicaria em uma visão parcial e distorcida do passado; se a extrapolação de interpretações, construídas em um contexto sócio-cultural tão diverso, não constituiria uma violentação interpretativa falsificando os próprios fenômenos que procura compreender.

Essa primeira crítica, referente ao uso da interpretação com efeito retroativo, pode ser rebatida em dois planos. Em um plano mais genérico, por ser oriunda de uma teorização que freqüentemente possui como ponto de partida um pensamento sociologizante ou marxista: condições sócio-econômicas diferentes produzem culturas diferentes. O curioso desse tipo de idéia é que ela própria também possui por fonte a concepção de que uma teoria contemporânea - sociologia ou marxismo - serve para interpretar universalmente todos os fenômenos, mesmo de modo retroativo. Por debaixo deste tipo de pensamento podemos ainda, no caso de estudiosos e especialistas em determinada época ou autor, perceber também a tentativa de manter imaculado um idealizado objeto de estudo: uma flor mumificada em uma redoma de cristal; virgem a ser defendida do assalto bárbaro de furiosos centauros interpretativos vindos do futuro. A objeção quanto ao uso que a psicanálise faz do mito grego deve ser rebatida também em um segundo plano, mais específico, concernente ao cerne do próprio pensamento freudiano. Torna-se necessário admitir que a psicanálise sempre possuiu algo de platônico em sua fundamentação epistemológica. Platônico na acepção de, consciente ou inconscientemente, acreditar que por detrás dos fenômenos existem essências universais e eternas, pelo menos no que concerne ao ser humano. A Psicanálise postula a universalidade e o paralelismo entre a origem do indivíduo (ontogênese) e da espécie (filogênese); postula a universalidade subjacente aos fundamentos da cultura e da sociedade. Logo a psicanálise pode ser aplicada, com o auxílio de certa flexibilidade e contribuição de outros autores além de Freud - diriam os menos ortodoxos - ao comportamento de todos os indivíduos e à compreensão de todos os fenômenos históricos e sociais, em todos lugares e épocas. Portanto a epistemologia subjacente ao pensamento psicanalítico fundamenta-se em essências universais.

Três Objeções Jungianas
Uma vez consideradas as críticas mais genéricas do historicismo sobre o uso de mitos por um sistema psicológico contemporâneo, podemos refletir sobre críticas mais específicas à interpretação do mito de Édipo. Quanto à utilização feita por Freud do ciclo tebano devem ser consideradas três objeções à leitura psicanalítica. São críticas feitas por autores jungianos de peso, como o já mencionado Junito Brandão, um dos maiores conhecedores e pensadores brasileiros sobre a Grécia Antiga.

São estas objeções: primeiro, que Édipo tivesse assassinado Laio como fruto de simples coincidência ou que nada diferente poderia ter feito, pois seu destino era apenas joguete da cega fatalidade; segundo, que Édipo tivesse se casado com Jocasta ou por mero dever das funções de chefe de estado ou porque o mito teria suas origens ainda em tempo que a sucessão ao poder passaria por uma linha matriarcal; e, em terceiro, que Édipo, ao contrário do ódio que os psicanalistas dizem que teria de seu pai, não teria raiva de Jocasta, apesar de que ela era tão culpável pela tentativa de assassinato quanto o primeiro marido, muito pelo contrário, o casamento harmonioso de Édipo e Jocasta resultara em quatro filhos. Não por acaso, as três críticas à interpretação freudiana do mito de Édipo representam três principais críticas ao cerne da Psicanálise.

Édipo e Laio: Resposta à Primeira Objeção
Vejamos a primeira crítica. Acreditando que os Reis de Corinto - Pólibo e Mérope - fossem seus pais verdadeiros, Édipo fugira em uma tentativa extrema de evitar que a profecia a que estava destinado fosse cumprida. A primeira crítica é a de que o assassinato de Laio e de sua comitiva, cometido por Édipo na tríplice encruzilhada da estrada que o levaria a Tebas, foi fruto de mero azar, apenas uma funesta coincidência serem pai e filho, sem que nenhum dos dois soubesse. Ora Édipo fôra abandonado quase recém-nascido, como poderia ter alguma noção de que Laio e Jocasta eram seus pais verdadeiros? A resposta a essa crítica, que também é a crítica a um dos pilares da psicanálise - a existência de um inconsciente dinâmico que guarde marcas mnêmicas desde o nascimento -, é a de que passou por cima de várias das sutilezas e nuances do mito e da peça de Sófocles. Édipo, sem saber exatamente por quê, sentira-se estranhamente abalado quando um bêbado numa festa o xingara de enjeitado. Por ter percebido que algo o atingira, além do racionalmente explicável, ou além do que seria razoável em virtude da simples ofensa por um despeitado, é que Édipo dirigira-se ao oráculo e dele obtivera a resposta terrível de que estava destinado a matar seu pai e casar com sua mãe.

Édipo conscientemente acreditava serem os reis de Corinto seus pais verdadeiros e questionados a esse respeito eles confirmaram que de fato era seu filho. O herdeiro do trono de Corinto, percebera que o xingamento ecoara de forma exagerada, sem que soubesse o motivo. Surgira o sintoma de que dentro de si algo se ocultava. A própria consulta ao oráculo revela no mito e na peça a percepção de que existem conhecimentos e conhecimentos, isto é, possui-se apenas uma vaga intuição, um desconforto - o sintoma - sem se saber de onde, nem por que ou para que, mas revelador de que há algo oculto dentro de nós mesmos, algo que nos é impedido conhecer mesmo que tentemos.

Todas as crianças, em intensidade variável, criam fantasias de adoção: os pais ruins, que a obrigam a dormir cedo e impedem que coma todos doces e sorvetes de uma vez só, além de possuírem inúmeros outros defeitos e falhas, devem tê-la raptado dos pais verdadeiros, provável e mui narcisicamente um rei e uma rainha belos e perfeitos. O trágico em Édipo é que realmente possuía dois pares de pais. Um par que sem qualquer remorso aparente ordenara além de sua morte também uma mutilação prévia. Outro par que o amara e criara como filho verdadeiro. Pólibo e Mérope afetivamente são os verdadeiros pais de Édipo e assim se sentem. De forma simbólica responderam ao filho a verdade. Ou seria mentira o que disseram os Reis de Corinto, quando questionados pelo filho. Sua resposta pode ser vista como uma representação mítica da dúvida se alguém pode amar os que não sejam da mesma carne: se o amor entre pais e filhos é inato ou adquirido, se passa pelo sangue ou é conquistado? Perplexo, Édipo indaga ao Mensageiro de Corinto, que lhe revelara ser adotado, sobre a dedicação de quem sempre conscientemente tivera por pai:

E ele me amava tanto, a mim, que lhe viera
de mãos estranhas? É plausível esse afeto?

Apesar de ter ocorrido em uma época em que Édipo ainda não podia falar, a tentativa de assassinato ficara inscrita no próprio corpo do bebê, por meio da mutilação dos pés, donde Oedipous = pés inchados. A arte grega antiga sempre representava Édipo com um grande chapéu de peregrino viajante, apoiando-se em um bastão por causa de sua dificuldade de andar. Também é um tema simbólico a ser aproveitado por todo o pensamento psicossomático contemporâneo.

Além da marca em seu próprio corpo, também ficara gravada em sua mente - de forma não verbal - a lembrança oculta de um pai filicida. Pode-se supor o ódio gerado na indefesa vítima. Adulto, Édipo não sabia que aquele Laio da encruzilhada era seu pai verdadeiro. O trágico está na coincidência articulada pelo Destino. Mas, tendo em si a imago de um pai filicida, produzindo ódio na mesma proporção, Édipo estava destinado a matar qualquer um que se encaixasse em sua imago paterna, eventualmente até mesmo o próprio Pólibo, o pai conscientemente amado. Por isto Édipo fugira, mas carregando consigo sua neurose.

Na tríplice encruzilhada - ao mesmo tempo símbolo do Destino e da liberdade de escolha - Laio comportara-se como um pai autoritário, arrogante e cruel. Viajava sem trajes reais e sem grande comitiva: não podia ser reconhecido como um rei a ter sempre direito de passar primeiro. Por uma mera briga de trânsito, Laio agredira Édipo no rosto com um bastão. Não tão estranho se lembrarmos que Laio, antes de seu casamento com Jocasta, seduzira um adolescente - que se suicidaria - contra a vontade do pai do menino ( a pederastia era aceita na Grécia Antiga, quando autorizada pelo pai, desrespeitar a autoridade paterna jamais ) e subira ao trono de Tebas matando seu tio, que de fato era um usurpador. Sem falar no filicídio posterior.

Questionar que Édipo pudesse ter em si a lembrança, mesmo que inscrita de modo pré-verbal, do que lhe sucedera após o nascimento equivale a questionar se é possível lembrarmos de algum modo de tudo, a vida toda, mesmo sem possuir acesso voluntário a esse conhecimento. Equivale a questionar também se essas inscrições podem produzir efeitos, mesmo que distorcidos da causa original, ao longo da vida, além de questionar se todo relacionamento também não é uma reedição dos relacionamentos passados. Isto é, equivale a questionar a existência de um inconsciente dinâmico, a existência do recalque, os efeitos concretos da transferência: a não aceitar o de onde, o pôrque e o para quê dos sintomas.

Édipo e Jocasta: Resposta à Segunda e à Terceira Objeções
A segunda crítica é a de que Édipo casara-se com Jocasta por mera obrigação. Parece-nos pouco provável que os cidadãos de Tebas, desesperados pela peste representada pela Esfinge, e agora ainda por cima sem um rei, decidissem premiar seu salvador, outorgando-lhe o poder e a mão da rainha, se ela não fosse uma mulher ainda atraente. Um pouco mais velha que o salvador de Tebas, é verdade, mas para os gregos, cuja polis era sempre orgulho máximo, não é plausível que oferecessem Jocasta como prêmio se não a considerassem à altura. O mais curioso é que no Édipo Rei de Sófocles, apesar de ser uma versão tardia do mito, não há menção do casamento ter sido por imposição. Ao contrário, o trágico ateniense não mencionando o motivo, faz supor Édipo ter desposado Jocasta por sua livre escolha. De qualquer modo tratou-se de uma relação suficientemente satisfatória, tanto que foi consumada com o nascimento de quatro filhos.

Questionar que Édipo tivesse alguma atração por Jocasta, tratando-se de um casamento por razões de estado, equivale a questionar o próprio desejo edípico como sexual. Equivale também questionar a própria existência da sexualidade infantil, que constitui outro dos pilares téorico-práticos de Freud. Sem a sexualidade infantil, que possui como fulcro o Complexo de Édipo, não existe articulação possível entre o campo das neuroses e perversões e o campo da sexualidade adulta.

A terceira crítica curiosamente opõe-se de modo ilógico à segunda: aceita-se que Édipo até mesmo tenha tido desejo de matar o pai, mas não possuía raiva alguma de Jocasta, tão filicida quanto o primeiro marido, tanto que um casamento harmonioso resultara em quatro filhos. Ora, se por um lado Édipo mata Laio com as próprias mãos, por outro, embora não tenha sido fisicamente o autor da morte de Jocasta, foi o responsável. Pouco antes Jocasta implorara que Édipo não prosseguisse em sua busca. Lembremos ainda os famosos versos ditos pela Rainha de Tebas, que também mostram seu desdém pelo o sonho e a revelação do desejo incestuoso:

O medo em tempo algum é proveitoso ao homem.
O acaso cego é seu senhor inevitável
e ele não tem sequer pressentimento claro
de coisa alguma; é mais sensato abandonarmos
até onde podemos à fortuna instável.
Não deve amedrontar-te, então, o pensamento
dessa união com tua mãe; muitos mortais
em sonho já subiram ao leito materno.
Vive melhor quem não se prende a tais receios.

Instantes depois, do pouco caso pelo sonho e o incesto, Jocasta, em pânico, conduz-se ao oposto: implora para que Édipo cesse a investigação, por que antes do próprio filho-esposo concluiu o início e o final da trama.

Peço-te pelos desuses! Se ainda te interessas
por tua vida, livra-te destas idéias!

Édipo simboliza o filósofo: semelhante ao neurótico obsessivo procura pela verdade a qualquer preço, só que ao invés de encobri-la dentro da busca obsessiva em um labirinto sem fim, como faz o neurótico, a encontra. Jocasta, que no primeiro momento representava o desdém pelo inconsciente, agora representa o papel da acomodação, do vamos ficar por aqui por que ir além é perigoso, do desde que ninguém mais saiba a verdade tudo pode ficar como está. Édipo busca a verdade a qualquer preço, que difere do conhecimento fáustico a qualquer preço, porque crê na existência de um princípio ou origem (arché) unificando Destino e Cosmos, neste princípio ancora-se a verdade (aletheia): o Sentido do Ser e a Verdade do Ser são um. Se este princípio provém dos deuses ou da vontade humana, não há como inferir. Para Jocasta, ao contrário, há apenas o acaso cego, a fortuna instável, a necessidade sem propósito outro que si mesma, logo o oportunismo é a conduta que lhe parece mais sensata. Sem dúvida, eticamente trata-se de um papel deplorável, embora bastante coerente com a misoginia e a perspectiva patriarcal da cultura grega antiga.

O resultado concreto da conduta de Édipo é o suicídio de sua esposa-mãe. Lembremo-nos de outra tradição cultural, que resultou nas Tábuas da Lei, em que um dos mandamentos é Honrarás Pai e Mãe. As ações de Édipo são fruto de uma agressividade que expressa-se junto com o amor, assim como um ódio que utiliza-se da sexualidade para poder expressar-se. Não pode existir maior desrespeito ao pai que fisicamente eliminá-lo, nem à mãe que consumar o ato sexual.

Questionar que Édipo tivesse algum ódio de sua mãe fIlicida equivale a questionar a importância da agressividade humana e seus múltiplos disfarces. De modo mais simbólico, equivale também a questionar a ambivalência e a destrutividade contidas na sexualidade infantil. Podemos ir um pouco além, supondo que também equivale questionar os motivos que obrigaram Freud dirigir-se, a partir de 1920, à segunda teoria das pulsões. Aceitemos ou não essa teoria, uma justificativa para a agressividade e o prazer em executá-la torna-se essencial para qualquer tentativa de compreensão do comportamento humano. Tanto do ponto de vista clínico, quanto da necessidade de conseguir explicar a orgia de destrutividade que consistira na Primeira Guerra Mundial ( à época apenas A Guerra Mundial ), o véu que há mais de um século Sade, Sacher-Masoch, Dostoievski, Nietzsche, entre outros, vinham retirando das idealizações iluministas da natureza humana, não podia mais ser recolocado. A não ser que, como as religiões mais primitivas, justificasse a destrutividade humana ao preço de maciça negação e projeção: coisa do demônio. A imagem poética do mito e da peça de Sófocles completa-se com sua segunda mutilação. Nada mais cruel e doloroso que furar os olhos. Cena que tanto na Antigüidade quanto hoje produz catarse no espectador ou no leitor. Culpa e castração, binômio imprescindível tanto para a compreensão da neurose, da perversão e da sexualidade adulta, quanto para a compreensão da auto-destrutividade humana.

Édipo: o Mito do Filósofo
Deve-se assinalar que embora o destino de Édipo seja terrível, sua imagem aos gregos antigos possuía características muito positivas. Simboliza a busca da verdade a qualquer preço que, como vimos, ao contrário da busca de conhecimento a qualquer preço, possui sempre um caráter ético. Por existir uma origem unindo o sentido à verdade, o conhecimento deixa de existir apenas como um amontoado de informações, passa a ter coerência orgânica, a ter um propósito, e que este propósito esteja em consonância com a natureza e caráter humanos (ethos, donde o ethos antropoi daimon do fragmento 119 de Heráclito, [Kahn, 1981] e que pode toscamente ser traduzido como o caráter é o destino do homem).

Édipo também simboliza o ser humano e seu logos como um poder mais forte que o sobrenatural, único capaz de vencer o medo. O Senhor de Tebas funda um racionalismo, mas um racionalismo iluminista e humanista, não a cega crença no poder da razão; um racionalismo pelo qual, quinze séculos mais tarde, Freud tanto buscou para explicar o aparente irracionalismo do ser humano. É notável o contraste entre a irracionalidade e a violência de Édipo quando defrontou-se com Laio e sua comitiva - que atingem em cheio sua neurose -, com sua atitude tranqüila diante da Esfinge. Criatura sobrenatural representando - assim como as sereias - almas dos mortos retornando para buscar os vivos, Édipo permanece impassível diante da ameaça da morte. Enquanto outros heróis - Ulisses, Perseu, Hércules - fazem uso de talismãs sobrenaturais ou até mesmo possuem a seu lado a presença de algum deus, Édipo soluciona o enigma apenas por meio do uso da razão. O futuro sempre aparece como enigma: o medo da morte que todo novo contém em si, que se não for decifrado também impedirá trazer o que o novo possui de bom.

Uma versão mais apurada do mito relata que, quando questionado pela Esfinge sobre qual o animal que de manhã anda de quatro (tetrapous), ao meio-dia em duas (dipous) e a tarde com três patas (tripous), Édipo não respondera o homem, mas apenas golpeou com o punho seu próprio peito (afinal, ele era Oedipous). Ninguém decifrava a Esfinge por que o enigma proposto possuía sempre uma resposta muito simples e muito difícil: o próprio sujeito e não algo externo a si. A imagem de Édipo diante da esfinge - imagem que acompanhou Freud até à urna onde repousam suas cinzas - simboliza que toda época em que se procurar pela solução dos grandes problemas, a partir de próprio ser humano e não de alguma entidade externa, será uma época de humanismo, conhecimento e prosperidade. A imagem positiva de Édipo fez com que no ciclo épico mais antigo, que muito antecede a versão de Sófocles, fosse relatado um segundo casamento, bem como sua permanência no trono até morrer em combate (v. Grimal, 1963). Só quem buscou a verdade e encontrou-a pode ser um governante justo. Motivo pelo qual Sófocles, em sua variante patriótica ateniense, completada principalmente por Édipo em Colona, exila Édipo mas descreve o lugar de seu desaparecimento como abençoado pelos deuses. Fazendo com que Édipo misteriosamente termine seu destino próximo de Atenas, o trágico ateniense procurou justificar sua cidade como capital da Grécia Clássica, polis de Sócrates e Platão.

Conclusão: Édipo e o Destino da Psicanálise
Sem dúvida, é curioso que as três críticas diretas à interpretação do mito de Édipo em seu bojo reflitam a crítica aos principais fundamentos da psicanálise: a existência do inconsciente dinâmico, do recalque e dos efeitos concretos da transferência; a existência da sexualidade infantil; bem como os motivos que levaram Freud a postular a segunda teoria das pulsões. Também é curioso que o ciclo mítico seja freqüentemente associado a algo nefasto, quando em realidade possui também características auspiciosas e toda uma discussão sobre liberdade e destino, amor e ódio, verdade e encobrimento.

Desde a primeira carta de 1897, quando Freud, a partir de sua auto-análise, faz a primeira menção a Édipo, passando pela Interpretação dos Sonhos até os últimos escritos de 1938-39, o destino da Psicanálise está atrelado ao mito e à tragédia de Sófocles. A orientação teórica e a prática clínica do saber psicanalítico contrastam tanto contra o dogmatismo religioso, ancorando a essência do ser humano fora de si mesmo, quanto contra o pseudo-liberalismo do vale-tudo e do imediatismo de resultados, que desconhecem qualquer propósito ético, ancorando A essência do ser humano no acaso cego e na lei do mais forte.

Referências bibliográficas:
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BRANDÃO, J. de S. Mitologia Grega, volume III. Petrópolis, Editora Vozes, 1987.
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GRIMAL, P. Dictionnaire de la Mythologie Grecque et Romaine. Paris, Presses Universitaires de France, 1963.
HEIDEGGER, M. Introduction à la Metaphysique. Paris, Gallimard, 1983.
KAHN, C. H. The Art and Thought of Heraclitus. Cambridge, London, etc. Cambridge University Press, 1981.
KUHN, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo, Editora Perspectiva, 1978.
LOPES, A. J. A Psicanálise Como Revolução Científica e Mito. Dissertação de Mestrado em Medicina (Psiquiatria), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1985.
SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990.
SOPHOCLES. The Three Theban Plays (Antigone, Oedipus the King, Oedipus at Colonus), translated by Robert Fagles. Harmondsworth, Pinguin, 1984.
VERNANT, J.-P. e VIDAL-NAQUET, P. Mito e Tragédia na Grécia Antiga, 2 vol. São Paulo, Duas Cidades, 1977 (1ºvol.) e São Paulo, Editora Brasiliense, 1991 (2ºvol.).

* Anchyses Jobim Lopes, Médico (UFRJ), Mestre em Medicina (UFRJ), Doutor em Filosofia (UFRJ), Psicanalista e Membro Efetivo do Circulo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ
Publicado no Boletim Científico, Associação Psicanalítica de Nova Friburgo, nº 02, ano II, Nova Friburgo, Março 2001.